'O corpo esmagado da menina jazia espalhada na calçada um dia depois de mergulhar do quinto andar de um prédio de apartamentos
em Chicago. Todos disseram que ela tinha se suicidado, mas, na verdade, foi homicídio. O assassino foi um narcótico conhecido
na América como marijuana e na história como haxixe. Usado na forma de cigarros, ele é uma novidade nos Estados Unidos e é
tão perigoso quanto uma cascavel.'; Começa assim a matéria 'Marijuana: assassina de jovens', publicada em 1937 na revista
American Magazine. A cena nunca aconteceu. O texto era assinado por um funcionário do governo chamado Harry Anslinger. Se
a maconha, hoje, é ilegal em praticamente todo o mundo, não é exagero dizer que o maior responsável foi ele.
Nas primeiras décadas do século XX, a maconha era liberada, embora muita gente a visse com maus olhos. Aqui no Brasil,
maconha era 'coisa de negro', fumada nos terreiros de candomblé para facilitar a incorporação e nos confins do país por agricultores
depois do trabalho. Na Europa, ela era associada aos imigrantes árabes e indianos e aos incômodos intelectuais boêmios. Nos
Estados Unidos, quem fumava eram os cada vez mais numerosos mexicanos - meio milhão deles cruzaram o Rio Grande entre 1915
e 1930 em busca de trabalho. Muitos não acharam. Ou seja, em boa parte do Ocidente, fumar maconha era relegado a classes marginalizadas
e visto com antipatia pela classe média branca.
Pouca gente sabia, entretanto, que a mesma planta que fornecia fumo às classes baixas tinha enorme importância econômica.
Dezenas de remédios - de xaropes para tosse a pílulas para dormir - continham cannabis. Quase toda a produção de papel usava
como matéria-prima a fibra do cânhamo, retirada do caule do pé de maconha. A indústria de tecidos também dependia da cannabis
- o tecido de cânhamo era muito difundido, especialmente para fazer cordas, velas de barco, redes de pesca e outros produtos
que exigissem um material muito resistente. A Ford estava desenvolvendo combustíveis e plásticos feitos a partir do óleo da
semente de maconha. As plantações de cânhamo tomavam áreas imensas na Europa e nos Estados Unidos.
Em 1920, sob pressão de grupos religiosos protestantes, os Estados Unidos decretaram a proibição da produção e da comercialização
de bebidas alcoólicas. Era a Lei Seca, que durou até 1933. Foi aí que Harry Anslinger surgiu na vida pública americana - reprimindo
o tráfico de rum que vinha das Bahamas. Foi aí, também, que a maconha entrou na vida de muita gente - e não só dos mexicanos.
'A proibição do álcool foi o estopim para o 'boom' da maconha', afirma o historiador inglês Richard Davenport-Hines, especialista
na história dos narcóticos, em seu livro The Pursuit of Oblivion (A busca do esquecimento, ainda sem versão para o Brasil).
'Na medida em que ficou mais difícil obter bebidas alcoólicas e elas ficaram mais caras e piores, pequenos cafés que vendiam
maconha começaram a proliferar', escreveu.
Anslinger foi promovido a chefe da Divisão de Proibição e sua tarefa era cuidar do contrabando de bebidas. Foi nessa época
que ele percebeu o clima de antipatia contra a maconha que tomava a nação. Clima esse que só piorou com a quebra da Bolsa,
em 1929, que afundou a cação numa recessão. No sul do país, corria o boato de que a droga dava força sobre-humana aos mexicanos,
o que seria uma vantagem injusta na disputa pelos escassos empregos. A isso se somavam insinuações de que a droga induzia
ao sexo promíscuo (muitos mexicanos talvez tivessem mais parceiros que um americano puritano médio, mas isso não tem nada
a ver com a maconha) e ao crime (com a crise, a criminalidade aumentou entre os mexicanos pobres, mas a maconha é inocente
disso). Baseados nesses boatos, vários Estados começaram a proibir a substância. Nessa época, a maconha virou a droga de escolha
dos músicos de jazz, que afirmavam ficar mais criativos depois de fumar.
Anslinger agarrou-se firma à bandeira proibicionista, batalhou para divulgar os mitos antimaconha e, em 1930, quando o
governo, preocupado com a cocaína e o ópio, criou o FBN (Federal Bureau of Narcotics, um escritório nos moldes do FBI para
lidar com drogas), ele articulou para chefia-lo. De repente, de um cargo burocrático obscuro, Anslinger passou a ser o responsável
pela política de drogas do país. E quanto mais substâncias fossem proibidas, mais poder ele teria.
Mas é improvável que a cruzada fosse motivada apenas pela sede de poder. Outros interesses devem ter pesado. Anslinger
era casado com a sobrinha de Andrew Mellon, dono da gigante petrolífera Gulf Oil e um dos principais investidores da igualmente
gigante Du Pont. 'A Du Pont foi uma das maiores respondáveis por orquestrar a destruição da indústria do cânhamo', afirma
o escritor Jack Herer, em seu livro The Emperor Wears No Clothes (O imperador está nu, ainda sem tradução). Nos anos 20, a
empresa estava desenvolvendo vários produtos a partir do petróleo; aditivos para combustíveis, plásticos, fibras sintéticas
como náilon e processos químicos para a fabricação de papel feito de madeira. Esses produtos tinham uma coisa em comum: disputavam
o mercado com o cânhamo. Seria um empurrão considerável para a nascente indústria de sintéticos se as imensas lavouras de
cannabis fossem destruídas, tirando a fibra do cânhamo e o óleo da semente do mercado. 'A maconha foi proibida por interesses
econômicos, :\ especialmente para a abrir o mercado das fibras naturais para o náilon', afirma o jurista Walter Maierovitch,
especialista em tráfico de entorpecentes e ex-secretário nacional antidrogas.
Anslinger tinha um aliado poderoso na guerra contra a maconha: William Randolph Hearst, dono de uma imensa rede de jornais.
Hearst era a pessoa mais influente dos Estados Unidos. Milionário, comandava suas empresas de um castelo monumental na Califórnia,
onde recebia artistas de Hollywood para passear pelo zoológico particular ou dar braçadas na piscina coberta adornada com
estátuas gregas. Foi nele que Orson Welles se inspirou para criar o protagonista do filme Cidadão Kane. Hearst sabidamente
odiava mexicanos. Parte desse ódio talvez se devesse ao fato de que, durante a Revolução Mexicana de 1910, as tropas de Pancho
Villa (que, aliás, faziam uso freqüente de maconha) desapropriaram uma enorme propriedade sua. Sim, Hearst era dono de terras
e as usava para plantar eucaliptos e outras árvores para produzir papel. Ou seja, ele também tinha interesse em que a maconha
americana fosse destruída - levando com ela a indústria de papel de cânhamo.
Hearst iniciou, nos anos 30, uma intensa campanha contra a maconha. Seus jornais passaram a publicar seguidas matérias
sobre a droga, às vezes afirmando que a maconha fazia os mexicanos estuprarem mulheres brancas, outras noticiando que 60%
dos crimes eram cometidos sob efeito da droga (um número tirado sabe-se lá de onde). Nessa época, surgiu a história de que
o fumo mata neurônios, um mito repetido até hoje. Foi Hearst que, se não inventou, ao menos popularizou o nome marijuana (ele
queria uma palavra que soasse bem hispânica, para permitir a associação direta entre a droga e os mexicanos). Anslinger era
presença constante nos jornais de Hearst, onde contava suas histórias de terror. A opinião pública ficou apavorada. Em 1937,
Anslinger foi ao Congresso dizer que, sob o efeito da maconha, 'algumas pessoas embarcam numa raiva delirante e cometem crimes
violentos'. Os deputados votaram pela proibição do cultivo, da venda e do uso da cannabis, sem levar em conta as pesquisas
que afirmavam que a substância era segura. Proibiu-se não apenas a droga, mas a planta. O homem simplesmente cassou o direito
da espécie Cannabis sativa de existir.
Anslinger também atuou internacionalmente. Criou uma rede espiões e passou a freqüentar as reuniões da Liga das Nações,
antecessora da ONU, propondo tratados cada vez mais duros para reprimir o tráfico internacional. Também começou a encontrar
líderes de vários países e a levar a eles os mesmos argumentos aterrorizantes que funcionaram com os americanos. Não foi difícil
convencer os governos - já na década de 20 o Brasil adotava leis federais antimaconha. A Europa também embarcou na onda proibicionista.
'A proibição das drogas serve aos governos porque é uma forma de controle social das minorias', diz o cientista político
Thiago Rodrigues, pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos. Funciona assim: a maconha é coisa
de mexicano, mexicanos são uma classe incômoda. 'Como não é possível proibir alguém de ser mexicano, proíbe-se algo que seja
típico dessa etnia', diz Thiago. Assim, é possível manter sob controle todos os mexicanos - eles estarão sempre ameaçados
de cadeia. Por isso a proibição da maconha fez tanto sucesso no mundo. O governo brasileiro achou ótimo mais esse instrumento
para manter os negros sob controle. Os europeus também adoraram poder enquadrar seus imigrantes.
A proibição foi virando uma forma de controle internacional por parte dos Estados Unidos, especialmente depois de 1961,
quando uma convenção da ONU determinou que as drogas são ruins para a saúde e o bem-estar da humanidade e, portanto, eram
necessárias ações coordenadas e universais para reprimir seu uso. 'Isso abriu espaço para intervenções militares americanas',
diz Maierovitch. 'Virou um pretexto oportuno para que os americanos possam entrar em outros países e exercer os seus interesses
econômicos'.
Estava erguida uma estrutura mundial interessada em manter as drogas na ilegalidade, a maconha entre elas. Um ano depois,
em 1962, o presidente John Kennedy demitiu Anslinger - depois de nada menos que 32 anos à frente do FBN. Um grupo formado
para analisar os efeitos da droga concluiu que os riscos da maconha estavam sedo exagerados e que a tese de que ela levava
a drogas mais pesadas era furada. Mas não veio a descriminalização. Pelo contrário. O presidente Richard Nixon endureceu mais
a lei, declarou 'guerra às drogas' e criou o DEA (em português, Escritório de Coação das Drogas), um órgão ainda mais poderoso
que o FBN, porque, além de definir políticas, tem poder de polícia.
Fonte: Revista Super Interessante de Agosto/2002
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